Ao iniciar este ensaio, apresentamos a posição teórica de que nossas relações e construções sociais como, por exemplo, as instituições e os processos de socialização a que nos submetemos, por convencimento ou coação, são resultado de um complexo processo de comunicação interpessoal —um processo carregado de intencionalidade, interesses e necessidades que se manifestam na concretude de nossa ação material, no discurso elaborado e nos fatos históricos. Uma comunicação interpessoal exige, portanto, ajustes constantes de intenções e de interesses. É com esta idéia de intencionalidade exposta que escolhemos uns autores, uns argumentos e não outros, para sustentar as idéias que expomos a seguir.
A linha de pensamento elaborada busca suporte fundamentalmente no pensamento habermasiano (1982 e 1985) e na perspectiva dialógica de Freire (1979 e 1997). O principal deles é o argumento habermasiano que explicita a relação entre o conhecimento e os interesses que motivam sua produção. Este autor defende que o conhecimento, em uma perspectiva materialista, é produzido segundo os interesses que estão na base de sua produção. Entendemos, concordando com o autor, que o conhecimento também caminha sobre as respostas às perguntas que fazemos e questões que elaboramos sobre a vida cotidiana.
Assim que nosso interesse, neste ensaio, é estabelecer uma relação entre um tema específico, que preocupa o professorado de Educação Física e outros estudiosos ¾ aspectos psicomotores do desenvolvimento humano ¾ e o trabalho cotidiano que se exige desses professores nas Instituições Escolares onde todas as crianças e adolescentes passam, ou deveriam passar.
2. O QUE SE EXIGE DOS PROFESSORES DE EDUCAÇÃO FÍSICA NESTES DIAS?
Quando o Congresso Nacional aprovou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/96), deixou para trás e desconsiderou uma discussão acumulada sobre o que as comunidades escolares e a sociedade desejavam para a Educação Nacional, mantendo injustiças e iniqüidades anteriores ao mesmo tempo em que inaugurou uma nova época de incertezas com efeitos inesperados no âmbito da escola e dos diversos espaços educativos.
A Lei nº 9.394/96, o pacote jurídico da educação, mantém em mãos do Estado os recursos financeiros, a normatização (PCNs) e a avaliação (exame de final de curso) ao mesmo tempo que amplia a responsabilidade dos professores ao propor que estes assumam o compromisso com a elaboração e a operacionalização do Projeto Pedagógico da Escola.
A atual legislação retira da Educação Física sua antiga “certeza legal”, ou seja, descarta os padrões de referência tais como: número de horas-aula semanais, composição das turmas, etc., que na Lei 69.450/71 estavam normatizados[3]. Estabelece que a Educação Física deverá estar “integrada à proposta pedagógica da Escola”, conferindo-lhe o estatuto de componente curricular da Educação Básica. Recomenda ainda que deverá estar “ajustada” às faixas etárias e às condições da população escolar, “sendo facultativa nos cursos noturnos” (Art.26 §3º). A nova legislação não só propôs uma incerteza a ser negociada no âmbito de cada Escola como também retirou de pauta reivindicações históricas dos professores como, por exemplo, a exigência de especialista em Educação Física nas primeiras séries do Ensino Fundamental.
A atual LDB, como já mencionamos em parágrafo anterior, mantém nas mãos do Estado (União) a competência para elaborar o Plano Nacional de Educação, em colaboração com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, maximizando a ação do executivo e minimizando a participação dos Conselhos Municipais, Estaduais e Escolares de Educação, na formulação da política educacional (Art. 9º). Para operacionalizar a Política Educacional do MEC foram criados/elaborados os Parâmetros Curriculares Nacionais -PCNs- com “o pretenso objetivo de oferecer à população o domínio de recursos culturais imprescindíveis ao exercício da cidadania” (Taffarel, 1997:34)[4].
Além disso, pouca coisa a mais a norma trouxe de novidade para os Professores de Educação Física. No entanto tal iniciativa estabeleceu para esse coletivo a necessidade de negociar, discutir, consensuar e principalmente justificar a presença da Educação Física na Instituição Escolar e manter, pela argumentação pedagógica, o espaço institucional já conquistado e as suas prerrogativas anteriores à vigência da mesma. Tal negociação é fundamental, já que agora esse coletivo de docentes e a própria Educação Física precisam disputar espaço político-pedagógico com outros professores e outras disciplinas de conhecimento examinável (Ball, 1989), cuja relação que mantêm com o desenvolvimento econômico lhes conferem um status e um poder de primeira grandeza dentro da Escola e junto à Comunidade Escolar. Para tal disputa o Professor de Educação Física precisa exercitar e evidenciar algumas competências teóricas e comunicativas que até então não lhe eram exigidas.
3. A QUESTÃO
Que argumentos utilizará o Professor de Educação Física para justificar seu espaço político-pedagógico na Escola e o equivalente espaço da Educação Física como componente curricular?
Recorrerá à recente Lei nº 9.696/98 que dispõe sobre a regulamentação da Profissão e cria os respectivos Conselhos Federal e Regionais de Educação Física?
Utilizará os argumentos dos anos 70, cuja formação preparou os Professores como Técnicos Esportivos, para organizar e treinar equipes para o desporto escolar e atender a política de esportivização do país e o Sistema Desportivo Nacional, formatado nos termos da Lei 6.251/75?
Argumentará com as teses dos anos 80, através da psicocinética de Le Boulch (1983), Lapierre (1982), Picq e Vayer (1977) e outros, cuja terminologia e procedimento de intervenção concebiam o Licenciado em Educação Física como um cinesioterapeuta?
Justificará sua presença na Escola com a reflexão crítica iniciada na década de 80 sobre o papel do esporte na manutenção das relações assimétricas entre classes sociais, que juntamente com a psicocinética fizeram antítese à esportivização da Educação Física?
Poderá argumentar com os conhecimentos dos anos 90, cujo neotecnicismo na educação (Freitas, 1996) direciona as ações educativas para a globalização da economia e da homogeneização cultural, concebendo assim o Licenciado em Educação Física como assessor e especialista na aptidão e na condição física, elementos integrantes do estilo de vida ativo e dos habitus (Bourdieu, 1996) dos segmentos sociais que podem pagar por esse serviço (personal-training, em palavras da moda)?
Pensamos que o ponto zero, desta nova caminhada, passa pelo entendimento da ação do Professor e da Educação Física, enquanto componente curricular, dentro de uma perspectiva mais ampla de um projeto escolarizante.
4. COMO ENTÃO A EDUCAÇÃO FÍSICA SE JUSTIFICA, DENTRO DE UMA PERSPECTIVA DE TOTALIDADE, NA INSTITUIÇÃO ESCOLAR?
A Educação Física, na Educação Básica, somente se justificará através da argumentação convincente dos Professores de Educação Física nas disputas político-pedagógicas que se estabelecerão no âmbito das comunidades escolares. Entendemos que a argumentação deverá estar sustentada em quatro pontos principais:
a) assentar sua prática nas finalidades educativas que concebem a educação como prática de liberdade (Freire, 1979 e 1997), que luta contra a interdição do corpo, a educação bancária e os interesses que impedem o ser humano de “ser mais”. Uma prática como parte do arcabouço teórico que sustenta as teorias emancipatórias;
b) entender a Escola como espaço democrático de cultura, onde se dá tanto a reprodução como a produção de concepções de mundo, de conhecimento e de valores que disputam pretensões de validade, através das objetivações explícitas e não explícitas do currículum escolar (Giroux, 1990);
c) atuar como intelectual transformativo comprometido, através da articulação do conteúdo específico com as questões sociais, com a busca da autonomia dos sujeitos implicados em todo ato educativo (professor-aluno), como também articulado com os interesses da comunidade escolar, e;
d) sublinhar o conhecimento como um elemento de aproximação entre professor e aluno, da cultura popular e a cultura erudita didaticamente adaptada, sabendo de antemão que a seleção e organização dos conteúdos no currículum escolar é resultado de inclusões e omissões deliberadas, ou seja, o resultado de um projeto histórico de composições e conflitos de forças sociais (Libâneo, 1986).
A Educação Física concebida sobre esses pontos se justificará na escola em torno a um objetivo vital, qual seja: promover a alfabetização emancipatória dos alunos através das objetivações da cultura corporal, do reconhecimento destas manifestações como elementos de socialização e de conquista das pautas sociais de seu tempo histórico.
Neste sentido e concordando com Kunz (1994), a ação educativa do Professor de Educação Física tratará de oportunizar ao aluno os três níveis de competência: a técnica, a social e a lingüística. Enfim, capacitará o sujeito a uma ação comunicativa no mundo através do conhecimento específico do componente curricular em questão, a Educação Física.
5. OS ASPECTOS PSICOMOTORES DO DESENVOLVIMENTO HUMANO PODEM SER ELEMENTOS PARA ALCANÇAR TAL OBJETIVO E TAIS COMPETÊNCIAS?
Se a opção teórica do Professor de Educação Física for a de pautar-se pelos fundamentos da chamada psicomotricidade funcional (Picq e Vayer (1977), Vayer (1982), Le Boulch (1983) e outros) cuja proposta se restringe basicamente a avaliar (bateria de testes) e prescrever (reeducação motora e postural) cremos que sua ação será muito restrita. Neste “modelo” o desenvolvimento da criança e do adolescente, nos seus aspectos motor e das habilidades funcionais, é considerado independentemente do ambiente sócio-cultural circundante, ou seja, é considerado como instrumento para a fundamentação de um método de intervenção que pretende alcançar também o desenvolvimento global do ser humano.
Na nossa perspectiva, essa restrição se torna evidente, porque não leva em consideração as relações que o sujeito mantém com seus pares e a interação desses com o entorno histórico, político e social. A própria teoria materialista tem como fundamento o pensamento de que a organização do corpo e o desenvolvimento do corpo do sujeito está em muito influenciada pelo seu modo de vida e as ferramentas que utiliza para, interagindo com a natureza, garantir a reprodução da vida e a produção de meios de sobrevivência. Queremos dizer que as próprias experiências corporais são construções sociais e portanto influenciadas e delimitadas pelo contexto a cada tempo histórico.
Assim, problemas como organização corporal, lateralidade, orientação espaço-temporal, consciência corporal, coordenação motora, entre outros, estão muito mais vinculados (positiva ou negativamente) às vivências e experiências corporais do que propriamente à maturação do Sistema Nervoso Central, já que esta também é uma ação dialética homem-natureza.
Vale a pena destacar ainda que a restrição também se consubstancia na medida em que o trabalho psicomotor na perspectiva teórica “funcional”, em sua maioria, está orientado para o rendimento escolar e não para que o sujeito se entenda a si mesmo.
No nosso ponto de vista, ações educativas pautadas nos princípios e nos objetivos propostos pela psicomotricidade na perspectiva do desenvolvimento humano podem ter sustentação em duas propostas teóricas que ganham fôlego em nossos dias:
a) a chamada Prática Psicomotriz Educativa, paradigma defendido por Negrine (1995), elaborado a partir dos trabalhos de Lapierre e de Aucouturier, da análise de várias práticas, da observação etnográfica e na revisão de trabalhos anteriores do próprio autor.
Esta proposta teórica, de viés vigotskiano, integra a aprendizagem motora a uma proposta ampla de desenvolvimento infantil onde o jogo e a exercitação corporal, em ambientes organizados, que incluem a disponibilidade corporal do professor, se transformam em ambientes de aprendizagem social e de desenvolvimento humano. Além de consubstanciar a Psicomotricidade Relacional, tem demonstrado que o simbolismo aparece na criança antes dos três anos, tal como apregoa a literatura internacional e, portanto, com efeitos pedagógicos ainda não bem compreendidos pela comunidade de especialistas no âmbito da aprendizagem e do desenvolvimento infantil;
b) a Teoria dos Sistemas Ecológicos como paradigma para o desenvolvimento do ser humano, tese defendida no Brasil por Krebs (1997), a partir dos ensinamentos de Urie Bronfenbrenner, que é uma antítese às teorias desenvolvimentistas tradicionais. Trata-se de uma teoria que considera o contexto no qual o sujeito participa como parte integrante de um microssistema ambiental que se desenvolve articulado, dinamicamente, a sistemas maiores.
Assim, o desenvolvimento psicomotor pode ser entendido como uma face do desenvolvimento humano que se processa em consonância e integrado ao ambiente ecológico, isto é, não existe desenvolvimento humano, sem o desenvolvimento do ambiente ecológico, representado pelo micro-sistema como um todo.
“O ambiente, a estrutura socio-cultural e o momento histórico devem ser entendidos como estruturas dinâmicas e não como invariantes ao longo do tempo.” (Krebs, 1997. p.20)
Esta teoria, vale dizer, desloca o foco de análise antropocêntrica do desenvolvimento humano, para uma análise “na” e “da” relação.
Estas duas bases teóricas (Negrine, 1995 e Krebs, 1997) estão sinalizando vários aspectos que devem ser levados em consideração nas discussões e elaboração dos projetos de ensino que se seguirão a partir dos próximos anos. Destacamos os seguintes:
a) a necessidade de rever a fundamentação teórica e a metodologia de ensino da Educação Física na Escola, já que, como sugere Negrine (1995), a aprendizagem e o desenvolvimento infantil apresentam descontinuidades e, ainda que processos conseqüentes, não guardam relação de causa e efeito. Em uma palavra, o sujeito se desenvolve porque aprende e aprende porque se desenvolve. Nas diferentes faixas etárias, um pólo tem mais evidência nessa ação dialética;
b) a inadequação de propostas pedagógicas gerais de grande amplitude, já que os microssistemas e o ambiente funcionam como fatores decisivos de desenvolvimento e de aprendizagem do sujeito que aprende. O estudo denominado “Perfil de desenvolvimento dos escolares Kaigáng na terra da Guarita, RS” (Da Rocha e Krebs, 1997) é um belo exemplo de como o desenvolvimento corporal dos integrantes de uma comunidade culturalmente diferenciada está influenciado pelas condições ambientais e pelo patrimônio genético. Por outro lado, também se vê a pouca efetividade dos projetos sanitários e reeducativos, uma vez que estes têm significados distintos para os integrantes de cada comunidade. Isto quer dizer, sobretudo, que qualquer proposta pedagógica passa necessariamente por contemplar uma ação na dinâmica do microssistema como um todo;
c) a importância de planejar o trabalho docente nos marcos da perspectiva que contempla o ensino e a pesquisa como uma unidade de ação. Sem dúvida, o desenvolvimento humano e seus aspectos psicomotores é melhor observado e problematizado nas situações concretas de interação entre crianças, adolescentes e professores oportunizadas na ambiência da Instituição Escolar que, como evidenciam os vários debates pedagógicos, é o lugar privilegiado para aprender e ensinar.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O tema do desenvolvimento humano é amplo e existe um volume significativo de informações que são transmitidas nas diferentes Instituições de formação de Professores de Educação Física e cursos de pós-graduação da área. Neste ensaio optamos por articular algumas idéias e arriscar em uma linha de pensamento.
Por outro lado, procuramos também articular um tema específico, como é o caso dos aspectos psicomotores do desenvolvimento humano, com a situação que está colocada para a prática docente dos Professores de Educação Física no âmbito da Educação Escolar. Este novo cenário, produzido a partir do Reordenamento Jurídico da Educação Nacional, objetivado num pacote de leis, resoluções e planos curriculares de carácter nacional, produzirá impactos de significativa repercussão no processo de formação inicial e permanente dos professores[5].
Desta forma, as especificidades e objetivações da Educação Física, enquanto componente curricular da Educação Básica, têm que se pautar por uma base teórica explicitada e discutida no âmbito da Comunidade Escolar. Ou seja, o Licenciado em Educação Física tem de evidenciar, por exemplo, através da inclusão dos aspectos psicomotores do desenvolvimento humano em seu plano de ação, suas credenciais teóricas e, assim, chamar-se professor.
Fonte: NIPN