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Epilepsia, Agressividade e Personalidade

A abordagem da epilepsia tem sido muito diferente entre as duas disciplinas médicas que se ocupam do problema: a neurologia e a psiquiatria. Neurologicamente a epilepsia pode ser entendida como uma disritmia cerebral paroxística capaz de provocar alterações no sistema nervoso central e, conseqüentemente, em todo organismo. Sob o ponto de vista psiquiátrico, também se entende a epilepsia como uma disritmia cerebral paroxística, com alterações funcionais do sistema nervoso central e, conseqüentemente, manifestações no comportamento, nas emoções e nos padrões de reações do indivíduo.

O termo Epilepsia refere-se a uma condição crônica de ataques periódicos ou repetidos, causados por uma condição fisiopatológica da função cerebral, resultante da descarga espontânea e excessiva de neurônios corticais. Entretanto, não se deve entender a epilepsia como uma doença exclusivamente convulsiva. A convulsão é apenas um dos sintomas da doença, o qual traduz a existência ocasional de uma descarga excessiva e desordenada do tecido nervoso sobre os músculos do organismo. A epilepsia porém, deve ser conceituada atualmente, como uma síndrome com um conjunto de sinais e sintomas decorrentes desta disritmia cerebral paroxística. Nesta síndrome portanto, a convulsão propriamente dita, pode até estar ausente, como se acredita que aconteça na maioria dos pacientes disrítmicos.

Na disritmia cerebral o distúrbio no padrão elétrico da atividade neuronal mostra-se paroxisticamente e pode ser oriundo de qualquer parte do sistema nervoso central. Entretanto, alguns estudos iniciais pela tomografia de emissão de pósitrons têm mostrado que os focos epilépticos são hipometabólicos nos períodos intercrises, ou seja, o foco será hiperativo durante as crises e hipometabólicos fora das crises, o que significa não funcionarem bem em nenhum momento. Quando a localização do foco epileptógeno é no lobo temporal, esta atividade disrítmica se mostra mais relevante para a psiquiatria. Neste caso será denominada Epilepsia Parcial Complexa, Epilepsia do Lobo Temporal ou Epilepsia Psicomotora.

Em estudo realizado no Canadá em 1994 (Nathaniel J.Pollone e James J. Hennessy), num grupo de 372 homens presos de um hospital mental judiciário de segurança máxima, 20 % tinham anormalidades focais temporais do eletroencefalograma, e 41% tinham alterações patológicas da estrutura cerebral no lobo temporal. Isso sugere um relevante papel dos danos neurológicos na formação do comportamento violento. Os dados mostraram uma proporção de 21:1 para agressivos habituais, ou seja, 21 portadores de alterações neurológica para cada 1 agressivo sem essas alterações. Em relação à população normal a incidência foi de 4:1, ou seja, 4 vezes mais freqüente os agressores com as alterações neurológicas que os agressores sem elas.

As considerações acerca de determinada personalidade “epileptiforme”, a qual reúne traços encontradiços em pacientes disrítmicos, têm despertado discussões virulentas. Por cautela meramente acadêmica, colocamos o “epileptiforme” entre demagogos parênteses. Mesmo que a prática clínica cotidiana constate substanciais argumentos em favor de um rico conjunto de características personais em epilépticos, tanto sob o ponto de vista comportamental quanto afetivo, convém estabelecer mais algumas considerações sobre esse polêmico assunto e, desta forma, evitar arranhar opiniões ainda não sensibilizadas pela força das observações.

Kaplan considera, juntamente com outros tantos autores, uma alta incidência de psicoses na epilepsia. Além disso, as perturbações da personalidade constituem os problemas psiquiátricos mais comuns nesta disfunção do Sistema Nervoso Central. Não se afirma, com isso, que todos epilépticos possuam a mesma personalidade ou as mesmíssimas características, de forma que possamos colocá-los todos num mesmo “clone”. O que acontece são determinados traços comportamentais, de relacionamento, de reação vivencial, de emotividade e impulsividade encontrados estatisticamente de maneira significativa nos pacientes epilépticos.

Para melhor compreensão desse tema, é fundamental entendermos esse nosso epiléptico, não necessariamente como aquela pessoa que tem convulsões. Quase pelo contrário. A prática clínica nos tem ensinado que os epilépticos convulsivos são, inclusive, menos propensos à alterações de personalidade do que aqueles não convulsivos. Essas observações decorrem de um diagnóstico retrógrado, ou seja, primeiramente constatamos algum traço ou mesmo alteração de personalidade para, depois, constatarmos alterações eletroencefalográficas. Notadamente, são alterações do lobo temporal.

Outro fato a ser lembrado é em relação aos termos usados: estamos falando em traços e alterações de personalidade e não, necessariamente, em Transtornos de Personalidade. Isso quer dizer que esses traços nem sempre constituem uma doença. Para tal, de acordo com o conceito de Transtornos de Personalidade, há necessidade de concomitante prejuízo social e ocupacional.

Há uma maneira de ser do epiléptico caracterizada, principalmente, por irritabilidade, explosividade, agressividade, querelância, viscosidade, instabilidade de humor e outros sinais muito bem delineados pelo trabalho de Lúcia Coelho. Também se vê na prática clínica, outras alterações mais patológicas e responsáveis por alterações da sensopercepção, tais como alucinações e ilusões, não citadas por essa autora e encontradas em pacientes com alterações eletroencefalográficas do lobo temporal.

Inegavelmente a epilepsia resulta de um distúrbio fisiológico do Sistema Nervoso Central e não de conflitos intra-psíquicos, embora, sem dúvida, estes possam coexistir. Assim, os transtornos epileptiformes da personalidade seriam muito mais secundários a alterações funcionais do Sistema Nervoso Central, do que motivados por razões exclusivamente emocionais, cogitando-se, inclusive, que muitos dos sentimentos esboçados por tais pacientes sejam conseqüência deste distúrbio funcional.


Uma das características da personalidade facilmente observável nos epilépticos extrovertidos, talvez seja a chamada viscosidade, mas só nos extrovertidos. Esta alteração se evidencia numa forma de inter-relacionamento pessoal caracterizada por adesividade, circunstancialidade e prolixidade; a conversação com o paciente costuma ser lenta, séria, pedante, irritantemente ponderada, excessivamente cheia de detalhes, minúcias supérfluas e demasiadamente circunstancial. Comumente o ouvinte se aborrece diante do desprezo ao tema principal da conversa em benefício dos detalhes, procura reconduzir o assunto à pauta principal mas o paciente insiste no discurso com um volteio interminável. Encerrar a conversa com tais pacientes é tarefa difícil, despedir-se deles é demorado e irritante; freqüentemente fazem que dão o assunto por encerrado mas acrescentam mais alguma coisa, ficam mais um pouco, lembram mais alguma coisa a perguntar, enfim, grudam demais. Por isso são chamados de viscosos ou pegajosos.

Outra peculiaridade comportamental encontradiça em alterações da personalidade do paciente disrítmicos é a agressividade. Segundo Kaplan, existem evidências sugerindo que o aumento da agressividade esteja relacionada a lesões focais irritativas, particularmente do lobo temporal e frontal, amígdala medial e tegumento mesoencefálico. Johnson refere pesquisas de Mark e Ervin constatando mais de 50% de epilepsia entre 163 pacientes agressivos e acrescenta que “o tipo mais comum de doença cerebral associada ao comportamento destrutivo e ao descontrole de comportamento é a epilepsia do lobo temporal”.

Bleuler diz ser a intensidade mórbida dos impulsos emocionais e dos estados de ânimo o traço mais dominante do caráter epiléptico, muito mais prolongados que numa pessoa normal e mais difíceis de interromper por influências externas. Assim sendo, o epiléptico pode ter uma ira cega em circunstâncias nas quais uma pessoa sadia apenas se zangaria. Mas não é só a irritabilidade a se manifestar de maneira exacerbada, também a alegria, gratidão e dedicação tendem a exagerar-se nesses distúrbios. Denis Williams aponta a intensificação das emoções, as dificuldades de relacionamento e o comportamento agressivo nas epilepsias do lobo temporal, entre outras características.

O termo Personalidade Epileptóide é utilizada por Kaplan ao descrever o Transtornos Explosivo Intermitente, segundo a classificação do DSM-III-R. O Transtornos Explosivo Intermitente foi tratado pelo DSM-III-R e continua classificado pelo DSM-IV, no capítulo dos Transtornos do Controle dos Impulsos. Na CID-10 corresponde ao código F63.8, rotulado como Outros Transtornos dos Hábitos e Impulsos, dentro do capítulo Transtornos dos Hábitos e Impulsos. Devemos incluir aqui comportamentos mal adaptativos, persistentemente repetidos que não sejam secundários à qualquer síndrome psiquiátrica reconhecida e nos quais parece haver falhas repetidas a resistir a impulsos para executar o comportamento agressivo.

Tanto a CID-10 quanto o DSM-IV colocam os seguintes transtornos juntos:
1 – Transtornos Explosivo Intermitente
2 – Cleptomania
3 – Jogo Patológico
4 – Piromania
5 – Tricotilomania

A característica essencial dos Transtornos de Controle dos Impulsos é o fracasso em resistir a um impulso ou tentação de executar um ato perigoso para a própria pessoa ou para outros. Na maioria dos transtornos descritos nesta classificação, o paciente sente uma crescente tensão ou excitação antes de cometer o ato. Após cometê-lo, pode ou não haver arrependimento, auto-recriminação ou culpa.

Embora o indivíduo fracasse em resistir ao ímpeto e à tentação para a realização de tais atitudes, poderá experimentar grande arrependimento tão logo concretize o ato. Kaplan enfatiza autores atuais que atestam um possível envolvimento de fatores orgânicos nos distúrbios dos impulsos e determinadas experiências que demonstram regiões específicas do cérebro envolvidas com a atividade impulsiva e violenta, como é o caso do sistema límbico e epilepsias dos lobos temporais. Este quadro de explosividade e/ou agressividade é melhor estudado no capítulo anterior sobre o Comportamento Violento.

Um outro transtorno da personalidade associado à epilepsia, desta feita do lobo frontal (raras vezes também à epilepsia do lobo temporal), é a condição descrita pelo DSM-III-R como Síndrome Orgânica da Personalidade, referida em classificações mais antigas como um padrão de comportamento compatível com a Síndrome do Lobo Frontal. É um distúrbio persistente da personalidade caracterizado principalmente por instabilidade afetiva, explosões de agressividade ou raiva recorrentes, comprometimento acentuado do julgamento social, apatia acentuada e indiferença, desconfiança ou ideação paranóide.

No caso de Síndrome Orgânica da Personalidade, pode haver um acentuado comprometimento social e ocupacional proporcional ao comprometimento do juízo crítico e às crises de explosividade, fato muito mais atenuado nos casos de Transtornos Explosivo Intermitente. De maneira geral, tanto a Síndrome Orgânica da Personalidade como o Transtornos Explosivo Intermitente são modalidades de personalidade que proporcionam ao indivíduo uma maneira própria de existir, de reagir e de sentir a vida e cuja etiologia supõe-se associada à um transtorno disrítmico do Sistema Nervoso Central, porém, sem menção obrigatória da existência de convulsões.

De todo complexo sintomático associado à epilepsia, três sinais receberam atenção maior dos pesquisadores: irritabilidade, instabilidade afetiva e viscosidade. Nenhum deles, entretanto, é patognomônico da epilepsia e nem tampouco obrigatório nos pacientes epilépticos. Mais apropriado seria considerá-los como componentes de uma vasta constelação caracterológica, na maioria das vezes compatível com uma boa manutenção da vida gregária, mas possíveis de uma abordagem psiquiátrica, sempre que esta modalidade de personalidade fizer sofrer o indivíduo ou aqueles que o rodeiam.

Classificação e Diagnóstico
Devemos considerar a epilepsia sob dois pontos de vista: primeiramente como um conjunto sindrômico de sinais e sintomas psíquicos e, em segundo, como possibilidade de manifestação da potencialidade epiléptica sob a forma de crises clínicas definidas, desde a clássica convulsão generalizada até pequenos sintomas sensitivos, cognitivos ou psicomotores.

No caso de ser abordado o conjunto sindrômico do paciente disrítmico há que se compreender o epiléptico, com sua maneira de ser e sua personalidade. No caso da caracterização clínica das crises procura-se compreender a epilepsia, com seu quadro clínico, curso e evolução. Interessa à psiquiatria a abordagem do epiléptico em geral e das epilepsias com peculiar expressão psíquica. As demais formas são melhor estudadas pela neurologia.

As epilepsias podem ser Parciais ou Generalizadas. As epilepsias ditas Parciais são aquelas que comprometem apenas um dos hemisférios cerebrais. Entre elas, serão consideradas Parciais Simples sempre que não houver comprometimento da consciência e, ao contrário, Parciais Complexas havendo tal comprometimento. São Generalizadas as epilepsias que afetam ambos hemisférios cerebrais e, tal como as parciais, podem ser Convulsivas e não-Convulsivas.

I – EPILEPSIA PARCIAL
Simples
Complexa
II – EPILEPSIA GENERALIZADA
Convulsiva
Não Convulsiva

Entre as crises epilépticas interessa particularmente à psiquiatria, a Crise Parcial com Sintomatologia Psíquica. Estas crises podem se manifestar em forma de distúrbios paroxísticos da linguagem com crises de afasia transitórias, podem apresentar lapsos paroxísticos de memória, sensações de “dêjà vu”ou de “jamais vu”. Não raras vezes há queixas de distorções na percepção dos objetos, ora percebidos como aumentados ora como diminuídos, disformes, mudados de posição, etc.

Outras peculiaridades podem estar presentes nas Crises Parciais com Sintomatologia Psíquica, como por exemplo, as modificações paroxísticas do humor e do afeto, sensações de prazer e desprazer, episódios súbitos e imotivados de depressão e raiva, de medo e terror. O início e o término destas manifestações é, via de regra, abrupto e, freqüentemente, existem outros sinais sugestivos de disritmia concomitantes.

É de primordial importância ao clínico ter noção dessas alterações sensoperceptivas e emocionais conseqüentes à epilepsia. Estas são situações que despertam, na maioria dos psiquiatras, uma grande inclinação à utilização de antipsicóticos e/ou antidepressivos mas que, não obstante, respondem muito melhor ao uso de anticonvulsivantes, notadamente a carbamazepina.

Quando estas Crises Parciais são Complexas as alterações da consciência podem dar-se sob a forma de estreitamento, denominado Estado Crepuscular, freqüentemente de média ou longa duração. Nestes Estados Crepusculares é comum um certo automatismo motor, quase sempre com atitudes sem objetivo prático e expressão facial sugestiva de medo ou agressividade. Havendo agressividade extremada durante o Estado Crepuscular, podemos falar em Furor Epiléptico, distúrbio responsável por graves danos sociais e familiares. Passado o episódio, normalmente o paciente não guarda uma lembrança nítida do ocorrido.

Psiquiatricamente, entretanto, interessa-nos os indivíduos não apenas com crises eletrencefalograficamente ou fisiopatologicamente delimitadas mas, sobretudo, os portadores de um conjunto mais abrangente de sinais e sintomas capazes de conferir-lhes uma maneira peculiar de contatar a realidade e de viver. De acordo com este conceito, muitos autores têm utilizado o termo Personalidade Epiléptica (9,10), Epileptiforme ou Epileptóide para designar esta constelação de características psíquicas associadas à atividade disrítmica do Sistema Nervoso Central, notadamente do lobo temporal.

Eneida Matarazzo reconhece alterações de várias áreas do psiquismo como manifestações permanentes dos pacientes epilépticos. Na esfera do pensamento ela sublinha a prolixidade e viscosidade comentadas acima, na sexualidade ela refere o aumento ou diminuição da libido, na psicomotricidade observa a hiperatividade infantil e a presença de tiques e, na esfera da volição, enfatiza as obsessões e compulsões. As alterações da afetividade são descritas por essa autora englobando a irritabilidade, a agressividade, o medo e a depressão. Esta última com a marcante característica de apatia depressiva, mais que de tristeza, propriamente dita, e enfatiza também o medo patológico, imotivado e com início precoce na infância.

O diagnóstico da epilepsia, do ponto de vista psiquiátrico, quer seja do Transtornos Explosivo Intermitente, do Transtornos Explosivo da Personalidade, da Síndrome de Descontrole Episódico, de alguns Transtornos Disruptivos da Infância, da Epilepsia não Convulsiva, da Epilepsia Parcial com sintomas psíquicos ou, simplesmente, da Personalidade Epileptiforme, deve repousar em bases eminentemente clínicas. Devem ser avaliadas as manifestações da conduta, das emoções, das reações, do desenvolvimento psicomotor, bem como as queixas somáticas vagotônicas, a vida infantil e o relacionamento interpessoal. Enfim, devemos armar um arcabouço da personalidade atual e pregressa e daí, independente dos resultados eletrencefalográficos, dizer se o paciente tem ou não traços epileptiformes.

Para os profissionais sensíveis ao conceito das alterações da personalidade de natureza epiléptica, é muito importante a investigação minuciosa sobre algumas características personais. Evidentemente isso contribuirá, sobremaneira, na melhor resolutividade terapêutica, já que, como dissemos, tais quadros respondem bem à carbamazepina.

Deve-se verificar a ocorrência de enurese noturna na infância até mais de 6 anos, terror noturno mesmo depois de adulto, sono muito agitado com fala noturna e/ou sonambulismo em qualquer idade, episódios de perda de fôlego na primeira infância, ocorrência de convulsões febris na infância, irritabilidade e agressividade a vida toda, instabilidade do humor do tipo que acorda com o “pé esquerdo”, cefaléias freqüentes, incluindo o tipo enxaqueca, episódios de vista escura e tontura postural, distúrbios da atenção na infância, viscosidade, tendências depressivas do tipo apático. Trata-se de uma verdadeira constelação de traços que, no mínimo, oferecerão uma opção à mais para hipótese diagnóstica.

Há quem recomende, também, para a possibilidade desse tipo de personalidade epileptiforme, observações sobre a predominância do Sistema Nervoso Parassimpático, tais como, bradicardia, hipotensão arterial, tendência à gastrites e úlceras digestivas, alergia e asma brônquica. Para a psiquiatria, a convulsão generalizada é apenas mais um sintoma epiléptico, podendo ou não estar presente e o eletroencefalograma, nesses casos, só terá valor se positivo.

 

Fonte: NIPN

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